Primeiramente, Buffalo Jack separou
as suas lenhas e, lentamente, acendeu sua lareira, pois toda lenha deveria se
tornar carvão antes de estar ao ponto de assar os suricatos. Uma vez o com o fogo
aceso e estalante, ele se livrou da pesada veste de pele de ovelhas e as
espalhou para onde as fagulhas alcançavam.
- Assim secar rápido.
Removeu suas ferramentas e aparatos
dos coldres da cintura e as encostou à beirada do sofá de penas de Dodô.
- Agora, começar o prato de
suricatos!
Suricato era o prato favorito de
Buffalo Jack. Ele sempre os preparava com determinada maestria. A começar pela
escolha da vítima. Buffalo Jack somente escolhia os mais valentes do bando, que
possivelmente já adquirira infinita imunidade em batalhas de disputa de
território com outros animais de inestimada peçonha. Suas armas favoritas para
caçar eram os tacapes e os machados que ele mesmo desenvolvia. Atirava-os a
distância buscando acertá-los entre a nuca e a primeira medula, abaixo do
pescoço. Assim a morte era certeira. Não havia agonização. Buffalo Jack quase
nunca errava a mira. Neste dia ele havia matado quatro suricatos adultos.
Ao chegar em casa, ele iniciava o
ritual de limpeza e preparação dos temperos, para que seu cozido de suricatos
fosse perfeito. Os pequenos corpos eram colocados em fila no soalho da cozinha.
Buffalo Jack amolava sua faca nas pedras-pomes e depois a esterilizava esquento
à vela.
- O corte será perfeito agora.
A primeira incisão era na garganta.
Linearmente, Buffalo Jack abria a fina camada de pele e pelos até a região
pélvica do suricato. Assim as vísceras eram facilmente removidas com sua mão
enorme e áspera. Numa panela os miúdos; na outra, os graúdos. Excetuando a
cabeça, que era enterrada em honra a coragem dos pequenos suricatos, os demais
órgãos eram aproveitados, inclusive o sangue, por ser o elixir que continha o
soro das imunidades; Buffalo Jack o armazenava em pequenas garrafas e, todas as
noites, antes de dormir, tragava um gole profundo para prevenir-se das mazelas
do corpo.
Depois da incisão, aqueles que não
fossem servir de alimento para o mesmo dia, eram escaldados em ervas – de modo
que o excesso de pele e pelos eram removidos completamente – e, então, Buffalo
Jack também os embalsamava com uma cera conseguida pela asa derretida dos
pequeninos, podendo conserva-los por mais um ano inteiro. Mas, de todo modo, as
conservas não eram por muito tempo, pois Buffalo Jack apenas necessitava de
quatro dias para comer quatro suricatos.
- Pronto! Esse ser assado – ergueu,
enfim, seu troféu de carne, empalando-o em um enorme espeto de aço. Verificou o
fogo: perfeito para assá-lo. A lenha já havia se dissolvido em pedaços de
carvão. Assim, Buffalo Jack acomodou o suricato na brandura do fogo. Cansado e
ainda molhado, ele se sentou em sua cadeira de balanço e, parcimoniosamente,
elaborou mais um fumo de crisântemo para seu cachimbo como um quebra-cabeça meticuloso.
O calor do fogo estalava fagulhas e
mais fagulhas para perto dos seus cascos grossos e insensíveis. O sangue da
carcaça escorria pelo espeto, atiçando o fogo, aumentando as chamas.
- Nham, nham, logo, logo, comer –
disse esbaforindo a fumaça densa de seu pito.
Buffalo Jack alisou seus pelos
enfados e sebáceos tentando remover a espessura d’água de seu corpo já
esgarçado e frio. Esparramou-se em sua cadeira rangente e assistiu à carne esfumaçante
dourar nas centelhas da clareira. Não demorou muito, e ele cerrou os olhos
lentamente antecipando com a imaginação o sabor da carne em sua boca salivante.
Somente voltou a si quando o ronco de seu estômago passou a afetar o andamento
da fantasia de seu sonho. Para distrair a fome Buffalo Jack percorreu o pequeno
casebre em passos apressados e, depois que se cansou do movimento circular, foi
até sua janela em formato de quarto crescente para observar o movimento da
noite que chovia uma tempestade. Do que se podia observar pelos seus olhos
minguados, lá fora, a chuva estalava as calhas e as telhas. Como cachoeiras, as
torrentes se arrebentavam pelos vales, se exprimiam pelas rochas e deslizavam
às colinas, lavando e carregando as relvas, as árvores e os arbustos em direções
caóticas e descompassadas.
- Chuva demorar para passar –
sentenciou com sua sabedoria empírica.
De repente, no meio do oceano de
gotas, Buffalo Jack avistou um borrão rasteiro e veloz vindo em direção à sua
casa. Ele escutou o ranger dos degraus e com a coragem de um guerreiro nobre
foi até a porta e a abriu sorrateiramente – embora não pudesse evitar o ranger
das juntas empenadas. Seu corpo desengonçado e grande não pode ser plenamente
escondido entre a parede e a folha da porta. Ele esperou. “Onde estar o vulto”,
pensou. Tentou controlar sua respiração, afinal, suas narinas largas e
espaçadas poderiam denunciá-lo. Nada. Nem um movimento. Buffalo Jack se
impacientou em silêncio.
A expressão de sua face era de
concentração e desconfiança. Mas ele estava decidido.
- Quem ser você!? – gritou pulando
em frente à porta com o punho armado.
...
Houve um breve segundo de comoção.
Buffalo Jack não compreendeu. Desarmou os punhos. Desfez a face de fúria e
raiva. Por um breve instante ouviu-se apenas a chuva e seus estalos.
- O que ser você? – esbravejou
Buffalo Jack.
Era Rocco. Ele farejava o chão
molhado com uma certeza voraz.
Rocco latiu.
Buffalo Jack se afastou cerrando os
punhos. Rocco, sem se intimidar com a reação de Buffalo Jack, entrou como se a
casa fosse sua e correu para a onde farejava o sono de Kaori. Ao chegar à
porta, Rocco latiu ainda mais. Ele arranhava as paredes, na tentativa de
acessar o local em que estava sua dona.
Buffalo Jack tapou os ouvidos e
gritou.
- Pare com isso ou eu pegar você!
Rocco insistia com seus latidos de
ansiedade.
Urrando em raiva, Buffalo Jack
correu em direção a Rocco e com apenas um soco, ele o desacordou.
Do outro lado da parede, escutou-se
um grito agudo e abafado. Era Kaori.
- Rocco! É você? – choramingou.
- Oh, não, ela acordou – suspirou
Buffalo Jack – e agora, o que fazer?
Ele pegou o corpo desfalecido de
Rocco e o jogou nas costas. Depois de suspirar seus anseios e suas
inseguranças, ele abriu a porta.
Kaori tinha os olhos tão marejados
quanto à chuva que corria lá fora. Seu corpo estava acuado e, suas mãos
justapostas e indefesas, sua pequena boca semicerrada, demonstravam o temor
daquele homenzarrão grotesco.
Quem é você? – gaguejou Kaori – e
por que Rocco está desacordado?
Buffalo Jack permaneceu imóvel
segurando as patas de Rocco ao redor de seu pescoço.
Os lampejos dos raios eram a única
luz do ambiente, o que tornava a aparência de Buffalo Jack ainda mais grotesca.
Kaori engoliu o temor e o choro e mais uma vez perguntou:
- O que o Rocco tem? Foi você quem
fez isso?
Buffalo Jack caminhou em direção a
Kaori. Ela hesitou se arrastando para trás, a cada passo que ele dava. Buffalo
Jack se aproximava cada vez mais. Kaori tentou mais uma vez se afastar, mas
logo o espaço da mesa se acabou e ela foi ao chão. Quando se recompôs da queda,
Buffalo Jack já estava ao seu lado.
- Não me machuque! – gritou
chorando – Não faça nada com meu cãozinho!
Buffalo Jack se abaixou e Kaori
pode fitá-lo de perto. Ele era realmente feio, com suas narinas úmidas e seus
odores fortes. Kaori tentou não encará-lo por muito tempo para que seu olhar
não fosse considerado uma afronta. Assim, ela desviou seus olhos para Rocco,
ele continuava esmaecido. Ela chorou.
Lentamente, Buffalo Jack retirou
Rocco de suas costas e o deitou ao lado de Kaori. Ele se levantou e, depois de
suspirar, se retirou batendo a porta.
- Não interromper meu jantar de
suricatos – berrou enquanto a porta se fechava.
Sozinha com Rocco, Kaori chorou
ainda mais. Ela estava com saudades e havia se arrependido de tê-lo enxotado
para o meio da relva, deixando-o desprotegido. Rocco estava bastante
debilitado. Era possível ver algumas escoriações em suas patas. Ela o abraçou
forte e se deitou ao seu lado.
Kaori pensou em como chegara até
ali.
Vagarosamente, ela tirou seus
sapatos gastos e sujos. Ambos deviam estar exaustos. Ela andou o dia inteiro a
procura dele. E ele andou o dia inteiro se escondendo de medo dela. As pedras
machucaram os pés de Kaori e as patas de Rocco. Seus corpos estavam úmidos da
chuva que tomaram. Era realmente necessário se abraçarem para se aquecer.
- Queria estar em minha caminha
quente e macia com o meu cobertor quente e macio. Eu pediria para mamãe deixar
você deitar na minha cama também, Rocco. Ela não ia negar. E então poderíamos
dormir assistindo à TV ou lendo alguma história. O que você acha?
Rocco
não respondeu, estava distante e alheio àquele mundo.
-
O tempo lá fora me assusta. Está chovendo tanto... Como sairemos daqui? Você
sabe como viemos parar aqui? Foi você quem me trouxe aqui? E se isso tudo for
um sonho? Eu não quero mais sonhar, Rocco, sonhar assusta bastante... Eu não
sei se isso é um sonho, Rocco. O que será tudo isso? Por que é que a gente veio
parar aqui? O que foi que eu fiz?
Ela o abraçou fortemente e fechou
os olhos.
- Nunca mais eu vou brigar com
você. Me desculpe.
Por longas horas, Kaori chorou
abraçada a Rocco. Seu remorso era penoso. Ela agora sabia que se afastar de seu
fiel escudeiro canino não era uma ideia inteligente, pois a solidão, nesses
tempos idílicos, é a única coisa capaz de assolar a alma em tristeza e
desespero. Foi necessária muita coragem para caminhar os vales e morros
solitários na esperança de encontrar Rocco. Coragem que se confundiu com raiva
e desespero.
- A solidão pode deixar a gente
louca – balbuciou com seus olhos pesados e inchados. Cansada, Kaori se entregou
e dormiu abraçada ao seu grande amigo.
Buffalo Jack, na sala ao lado,
fingia não se importar, enquanto mastigava seu jantar de suricatos, porém seus
olhos denunciavam o pensamento que suspeitava daquele serzinho do outro lado da
porta, que gritava e chorava pela vida de outro.
“O que ser aquilo?”, resmungou para
si cuspindo o resto de ossos.
Buffalo Jack pensou sobre como
poderia resolver aquela situação, de modo que compreendesse também como faria
para se livrar daqueles seres inoportunos que, agora, incomodavam sua paz.
Considerou matá-los e comê-los, mas sendo-os desconhecidos não podia saber se
existia veneno em seus corpos. Decidiu não arriscar. Considerou também caminhar
com eles para longe das zonas conhecidas e, em seguida, despistá-los. Mas Adam
poderia encontrá-los.
- É isso! Vou levar seres estranhos
para o Adam. Ele saber o que fazer, reafirmou com os punhos contra a mesa.
Buffalo Jack observou sua janela
minguante, num humor solene, de melancolia e preocupação. A noite ainda estava
longe de amanhecer e, por isso, acendeu o velho cachimbo e buscou a distração
no desenho que as estrelas faziam no céu crepuscular e iluminado.
Certamente, Buffalo Jack não
conhecia sobre a ciência do mundo, mas quem disse que a sabedoria reside no
corpo da matéria ou na qualidade da palavra? A sabedoria reside no íntimo do
ser, naquilo que chamamos de espírito, coração ou consciência, e se expressa de
dentro para fora. Embora Buffalo Jack não conhecesse o léxico, conhecia muito
bem os sinais da vida e da alma. E mesmo sendo muitas vezes incompreendido e
solitário, seu senso de decisão era sempre carregado de um amor rústico, porém
sincero. Há quem diga que a solidão é a defesa dos corações frágeis, carregados
de lealdade, que temem ser magoados e que não aceitam as frustrações.
De fato, os sentimentos que
guardamos no nosso espírito, coração ou consciência, são janelas da alma...
... e a janela de Buffalo Jack é
ainda minguante, tímida para o mundo exterior ao seu.
- A tempestade acabou. Sem nuvens.
Dia de sol amanhã.
Sentou-se na poltrona limpando o
pito do cachimbo. Chegava a hora de dormir. Espreguiçou-se estalando os ossos
e, antes de cochilar em sua poltrona, Buffalo Jack urinou contra o fogo da
lareira, apagando-a por completo.
- Amanhã... Adam conhecerá os
esquisitos... Amanhã.