quarta-feira, 7 de outubro de 2015

- o Sonho de Kaori [parte II]

Primeiramente, Buffalo Jack separou as suas lenhas e, lentamente, acendeu sua lareira, pois toda lenha deveria se tornar carvão antes de estar ao ponto de assar os suricatos. Uma vez o com o fogo aceso e estalante, ele se livrou da pesada veste de pele de ovelhas e as espalhou para onde as fagulhas alcançavam.
- Assim secar rápido.
Removeu suas ferramentas e aparatos dos coldres da cintura e as encostou à beirada do sofá de penas de Dodô.
- Agora, começar o prato de suricatos!
Suricato era o prato favorito de Buffalo Jack. Ele sempre os preparava com determinada maestria. A começar pela escolha da vítima. Buffalo Jack somente escolhia os mais valentes do bando, que possivelmente já adquirira infinita imunidade em batalhas de disputa de território com outros animais de inestimada peçonha. Suas armas favoritas para caçar eram os tacapes e os machados que ele mesmo desenvolvia. Atirava-os a distância buscando acertá-los entre a nuca e a primeira medula, abaixo do pescoço. Assim a morte era certeira. Não havia agonização. Buffalo Jack quase nunca errava a mira. Neste dia ele havia matado quatro suricatos adultos.
Ao chegar em casa, ele iniciava o ritual de limpeza e preparação dos temperos, para que seu cozido de suricatos fosse perfeito. Os pequenos corpos eram colocados em fila no soalho da cozinha. Buffalo Jack amolava sua faca nas pedras-pomes e depois a esterilizava esquento à vela.
- O corte será perfeito agora.
A primeira incisão era na garganta. Linearmente, Buffalo Jack abria a fina camada de pele e pelos até a região pélvica do suricato. Assim as vísceras eram facilmente removidas com sua mão enorme e áspera. Numa panela os miúdos; na outra, os graúdos. Excetuando a cabeça, que era enterrada em honra a coragem dos pequenos suricatos, os demais órgãos eram aproveitados, inclusive o sangue, por ser o elixir que continha o soro das imunidades; Buffalo Jack o armazenava em pequenas garrafas e, todas as noites, antes de dormir, tragava um gole profundo para prevenir-se das mazelas do corpo.
Depois da incisão, aqueles que não fossem servir de alimento para o mesmo dia, eram escaldados em ervas – de modo que o excesso de pele e pelos eram removidos completamente – e, então, Buffalo Jack também os embalsamava com uma cera conseguida pela asa derretida dos pequeninos, podendo conserva-los por mais um ano inteiro. Mas, de todo modo, as conservas não eram por muito tempo, pois Buffalo Jack apenas necessitava de quatro dias para comer quatro suricatos.
- Pronto! Esse ser assado – ergueu, enfim, seu troféu de carne, empalando-o em um enorme espeto de aço. Verificou o fogo: perfeito para assá-lo. A lenha já havia se dissolvido em pedaços de carvão. Assim, Buffalo Jack acomodou o suricato na brandura do fogo. Cansado e ainda molhado, ele se sentou em sua cadeira de balanço e, parcimoniosamente, elaborou mais um fumo de crisântemo para seu cachimbo como um quebra-cabeça meticuloso.
O calor do fogo estalava fagulhas e mais fagulhas para perto dos seus cascos grossos e insensíveis. O sangue da carcaça escorria pelo espeto, atiçando o fogo, aumentando as chamas.
- Nham, nham, logo, logo, comer – disse esbaforindo a fumaça densa de seu pito.
Buffalo Jack alisou seus pelos enfados e sebáceos tentando remover a espessura d’água de seu corpo já esgarçado e frio. Esparramou-se em sua cadeira rangente e assistiu à carne esfumaçante dourar nas centelhas da clareira. Não demorou muito, e ele cerrou os olhos lentamente antecipando com a imaginação o sabor da carne em sua boca salivante. Somente voltou a si quando o ronco de seu estômago passou a afetar o andamento da fantasia de seu sonho. Para distrair a fome Buffalo Jack percorreu o pequeno casebre em passos apressados e, depois que se cansou do movimento circular, foi até sua janela em formato de quarto crescente para observar o movimento da noite que chovia uma tempestade. Do que se podia observar pelos seus olhos minguados, lá fora, a chuva estalava as calhas e as telhas. Como cachoeiras, as torrentes se arrebentavam pelos vales, se exprimiam pelas rochas e deslizavam às colinas, lavando e carregando as relvas, as árvores e os arbustos em direções caóticas e descompassadas.
- Chuva demorar para passar – sentenciou com sua sabedoria empírica.
De repente, no meio do oceano de gotas, Buffalo Jack avistou um borrão rasteiro e veloz vindo em direção à sua casa. Ele escutou o ranger dos degraus e com a coragem de um guerreiro nobre foi até a porta e a abriu sorrateiramente – embora não pudesse evitar o ranger das juntas empenadas. Seu corpo desengonçado e grande não pode ser plenamente escondido entre a parede e a folha da porta. Ele esperou. “Onde estar o vulto”, pensou. Tentou controlar sua respiração, afinal, suas narinas largas e espaçadas poderiam denunciá-lo. Nada. Nem um movimento. Buffalo Jack se impacientou em silêncio.
A expressão de sua face era de concentração e desconfiança. Mas ele estava decidido.
- Quem ser você!? – gritou pulando em frente à porta com o punho armado.
...
Houve um breve segundo de comoção. Buffalo Jack não compreendeu. Desarmou os punhos. Desfez a face de fúria e raiva. Por um breve instante ouviu-se apenas a chuva e seus estalos.
- O que ser você? – esbravejou Buffalo Jack.
Era Rocco. Ele farejava o chão molhado com uma certeza voraz.
Rocco latiu.
Buffalo Jack se afastou cerrando os punhos. Rocco, sem se intimidar com a reação de Buffalo Jack, entrou como se a casa fosse sua e correu para a onde farejava o sono de Kaori. Ao chegar à porta, Rocco latiu ainda mais. Ele arranhava as paredes, na tentativa de acessar o local em que estava sua dona.
Buffalo Jack tapou os ouvidos e gritou.
- Pare com isso ou eu pegar você!
Rocco insistia com seus latidos de ansiedade.
Urrando em raiva, Buffalo Jack correu em direção a Rocco e com apenas um soco, ele o desacordou.
Do outro lado da parede, escutou-se um grito agudo e abafado. Era Kaori.
- Rocco! É você? – choramingou.
- Oh, não, ela acordou – suspirou Buffalo Jack – e agora, o que fazer?
Ele pegou o corpo desfalecido de Rocco e o jogou nas costas. Depois de suspirar seus anseios e suas inseguranças, ele abriu a porta.
Kaori tinha os olhos tão marejados quanto à chuva que corria lá fora. Seu corpo estava acuado e, suas mãos justapostas e indefesas, sua pequena boca semicerrada, demonstravam o temor daquele homenzarrão grotesco.
Quem é você? – gaguejou Kaori – e por que Rocco está desacordado?
Buffalo Jack permaneceu imóvel segurando as patas de Rocco ao redor de seu pescoço.
Os lampejos dos raios eram a única luz do ambiente, o que tornava a aparência de Buffalo Jack ainda mais grotesca. Kaori engoliu o temor e o choro e mais uma vez perguntou:
- O que o Rocco tem? Foi você quem fez isso?
Buffalo Jack caminhou em direção a Kaori. Ela hesitou se arrastando para trás, a cada passo que ele dava. Buffalo Jack se aproximava cada vez mais. Kaori tentou mais uma vez se afastar, mas logo o espaço da mesa se acabou e ela foi ao chão. Quando se recompôs da queda, Buffalo Jack já estava ao seu lado.
- Não me machuque! – gritou chorando – Não faça nada com meu cãozinho!
Buffalo Jack se abaixou e Kaori pode fitá-lo de perto. Ele era realmente feio, com suas narinas úmidas e seus odores fortes. Kaori tentou não encará-lo por muito tempo para que seu olhar não fosse considerado uma afronta. Assim, ela desviou seus olhos para Rocco, ele continuava esmaecido. Ela chorou.
Lentamente, Buffalo Jack retirou Rocco de suas costas e o deitou ao lado de Kaori. Ele se levantou e, depois de suspirar, se retirou batendo a porta.
- Não interromper meu jantar de suricatos – berrou enquanto a porta se fechava.
Sozinha com Rocco, Kaori chorou ainda mais. Ela estava com saudades e havia se arrependido de tê-lo enxotado para o meio da relva, deixando-o desprotegido. Rocco estava bastante debilitado. Era possível ver algumas escoriações em suas patas. Ela o abraçou forte e se deitou ao seu lado.
Kaori pensou em como chegara até ali.
Vagarosamente, ela tirou seus sapatos gastos e sujos. Ambos deviam estar exaustos. Ela andou o dia inteiro a procura dele. E ele andou o dia inteiro se escondendo de medo dela. As pedras machucaram os pés de Kaori e as patas de Rocco. Seus corpos estavam úmidos da chuva que tomaram. Era realmente necessário se abraçarem para se aquecer.
- Queria estar em minha caminha quente e macia com o meu cobertor quente e macio. Eu pediria para mamãe deixar você deitar na minha cama também, Rocco. Ela não ia negar. E então poderíamos dormir assistindo à TV ou lendo alguma história. O que você acha?
Rocco não respondeu, estava distante e alheio àquele mundo.
- O tempo lá fora me assusta. Está chovendo tanto... Como sairemos daqui? Você sabe como viemos parar aqui? Foi você quem me trouxe aqui? E se isso tudo for um sonho? Eu não quero mais sonhar, Rocco, sonhar assusta bastante... Eu não sei se isso é um sonho, Rocco. O que será tudo isso? Por que é que a gente veio parar aqui? O que foi que eu fiz?
Ela o abraçou fortemente e fechou os olhos.
- Nunca mais eu vou brigar com você. Me desculpe.
Por longas horas, Kaori chorou abraçada a Rocco. Seu remorso era penoso. Ela agora sabia que se afastar de seu fiel escudeiro canino não era uma ideia inteligente, pois a solidão, nesses tempos idílicos, é a única coisa capaz de assolar a alma em tristeza e desespero. Foi necessária muita coragem para caminhar os vales e morros solitários na esperança de encontrar Rocco. Coragem que se confundiu com raiva e desespero.
- A solidão pode deixar a gente louca – balbuciou com seus olhos pesados e inchados. Cansada, Kaori se entregou e dormiu abraçada ao seu grande amigo.
Buffalo Jack, na sala ao lado, fingia não se importar, enquanto mastigava seu jantar de suricatos, porém seus olhos denunciavam o pensamento que suspeitava daquele serzinho do outro lado da porta, que gritava e chorava pela vida de outro.
“O que ser aquilo?”, resmungou para si cuspindo o resto de ossos.
Buffalo Jack pensou sobre como poderia resolver aquela situação, de modo que compreendesse também como faria para se livrar daqueles seres inoportunos que, agora, incomodavam sua paz. Considerou matá-los e comê-los, mas sendo-os desconhecidos não podia saber se existia veneno em seus corpos. Decidiu não arriscar. Considerou também caminhar com eles para longe das zonas conhecidas e, em seguida, despistá-los. Mas Adam poderia encontrá-los.
- É isso! Vou levar seres estranhos para o Adam. Ele saber o que fazer, reafirmou com os punhos contra a mesa.
Buffalo Jack observou sua janela minguante, num humor solene, de melancolia e preocupação. A noite ainda estava longe de amanhecer e, por isso, acendeu o velho cachimbo e buscou a distração no desenho que as estrelas faziam no céu crepuscular e iluminado.
Certamente, Buffalo Jack não conhecia sobre a ciência do mundo, mas quem disse que a sabedoria reside no corpo da matéria ou na qualidade da palavra? A sabedoria reside no íntimo do ser, naquilo que chamamos de espírito, coração ou consciência, e se expressa de dentro para fora. Embora Buffalo Jack não conhecesse o léxico, conhecia muito bem os sinais da vida e da alma. E mesmo sendo muitas vezes incompreendido e solitário, seu senso de decisão era sempre carregado de um amor rústico, porém sincero. Há quem diga que a solidão é a defesa dos corações frágeis, carregados de lealdade, que temem ser magoados e que não aceitam as frustrações.
De fato, os sentimentos que guardamos no nosso espírito, coração ou consciência, são janelas da alma...
... e a janela de Buffalo Jack é ainda minguante, tímida para o mundo exterior ao seu.
- A tempestade acabou. Sem nuvens. Dia de sol amanhã.
Sentou-se na poltrona limpando o pito do cachimbo. Chegava a hora de dormir. Espreguiçou-se estalando os ossos e, antes de cochilar em sua poltrona, Buffalo Jack urinou contra o fogo da lareira, apagando-a por completo.

- Amanhã... Adam conhecerá os esquisitos... Amanhã.