Me lembro até hoje do dia em que conheci o significado da verdadeira paz nas florestas íngremes ao leste do
Himalaia, depois de nosso avião cargueiro não resistir ao ataque dos mísseis
letais do exército chinês em parceria com as milícias hindus do noroeste do Paquistão. A revolta que motivou a união desses povos da Ásia, tão culturalmente distintos,
ocorreu devido a um episódio inusitado em que uma família de chineses foi deportada
no compartimento de lixo de um navio de detritos e acabaram morrendo por uma intoxicação
‘desconhecida’. Esse fato tentou ser abafado pela política de nosso governo
para que não chegasse aos ouvidos dos Direitos Humanos. Mas foi em vão. O
governo chinês apurou a situação e constatou que essa família foi colocada
dentro de um contêiner para morrer, pois não havia mantimentos, estrutura sanitária e higiênica e a ventilação era precária. A morte, portanto, deve ter sido sofrida
e agonizante para todos que não dispunham nem mesmo de
recursos mínimos para a sobrevivência. “Isso não se faz nem com um animal”
terminou o governo chinês em sua declaração global. A merda fedeu ainda mais
para o nosso país quando a imagem das crianças encontradas no navio de detritos
foi divulgada em estado de putrefação em todos os meios de comunicação do
continente asiático, causando revolta e ojeriza a todos de alguma forma.
Ao invés de buscar uma saída pacífica,
o nosso presidente terminou de cagar e sentar em cima com seu pronunciamento
patriota em horário nobre. Na declaração oficial, ouvimos e vimos aquele asno
de gravata salientar em meio a gestos de maestro, com todas as letras, que
“[...] a população do leste asiático deveria evoluir como seres humanos plenos,
desenvolver valores morais e éticos e aprender um idioma e uma língua de
verdade, ao invés de se comunicarem por meio de garatujas e desenhos primitivos
e grotescos, para depois opinar sobre como nosso país deveria ou não conduzir
nossas políticas internas”. E completou dizendo que [...] “sabemos muito bem o que
devemos ou não fazer. Se qualquer manifestação for interpretada como desacato,
negligência ou grosseira por parte dos asiáticos, seremos obrigados a tomar
ações drásticas”. O pior de tudo isso foi que a nossa população aplaudiu de pé.
Concomitante ao pronunciamento do nosso excelentíssimo quadrúpede de ferraduras,
a população demonstrou seu apoio solidário, logo na primeira semana após o
pronunciamento oficial, assassinando alguns chineses nas vilas e nos bairros da
capital, gerando conflitos civis em nome do amor ao patriotismo eqüino. Os meios
de comunicação passaram a divulgar todo e qualquer ato de hostilidade por parte dos
asiáticos, principalmente as queimas de bandeira do nosso país em todas as
praças da Ásia – uma maneira saudável e barata de incutir o ódio e favorecer a
guerra. Nessas matérias midiáticas, assistíamos também às declarações e às ameaças
de militantes que, a todo o momento, diziam que nós teríamos o troco por termos
assassinado diversos representantes do ‘futuro do continente oriental’. E, honestamente,
nenhum de nós podia garantir que aqueles chineses estavam realmente falando
aquilo, até porque nosso governo já tinha declarado o que achava das garatujas
e desenhos primitivos deles. Seria natural traduzir os pronunciamentos da
maneira que nos fosse mais convenientes. Além do mais, nosso governo estava se
lixando para essas milícias e dava de ombros para as balelas que denominavam
nas manchetes de ‘discurso do povo amarelo’.
Dias depois, no porto, ao abrirem os contêineres de cargueiros vindos da Ásia, a polícia federal foi notificada de que
havia dez pessoas mortas, enroladas uma a uma na bandeira de nosso país embebida em sangue. Como se não bastasse, todos os defuntos estavam com um
mastro enfiado no cu – não podemos negar que esses chineses tinham um puta
senso de humor até para morte em vingança.
O nosso governo ficou louco. Os
portos foram fechados. As relações política e comercial foram rompidas. E o
pessoal da nossa embaixada na China foi dado como morto, pois não fizemos nada
para tirá-los de lá e nunca mais tivemos notícias deles. Instantaneamente, o
espírito de guerra foi emitido em megahertz, em tintas negras e em Morse para
toda população do país. E o que poderia ser remediado com pedidos diplomáticos de
desculpas e com a conscientização inspirada na declaração universal dos Direitos Humanos virou na verdade um circo bélico. “O povo do ocidente está
tentando incutir uma visão de mundo baseada no ódio aqui na nossa terra
sagrada” anunciavam os chineses. “Vamos acabar com a visão feudal desses
amarelos” diziam nossos meios de comunicação. A verdade é que ninguém estava
certo. Mas, mesmo assim, o nosso governo nos enviou para a batalha.
...e foi aí que começou a minha história.
...e foi aí que começou a minha história.
Por ser jovem e já ter sido preso diversas
vezes pela falsificação de documentos [como passaportes, registros gerais e
benefícios de pensão], minha aprovação foi praticamente instantânea, pois, além
de ser uma maneira de esvaziar as prisões eliminando aqueles que representavam
o caos para a sociedade, eu também era uma cifra no prejuízo econômico do
governo, pois à minha cabeça também estavam atrelados os custos da cadeia para o
estado. “Já que gastamos demais o mantendo fora da sociedade, ao menos morra
fazendo algo que preste: ajude a exterminar os chinas ou sirva de
escudo de proteção para os que realmente sabem atirar na guerra”, me disseram ao
comunicar meu alistamento involuntário. E lá fui eu. Confesso a vocês que eu
estava pouco me lixando para o que ia acontecer comigo. De verdade. Desde
pequeno aprendi a cultivar minha independência e a indiferença social. Eu nunca
tive família. Fui criado em reformatórios e em colégios internos. E, como
nesses lugares eu permanecia a maior parte do tempo sozinho, sem poder sair
para lugar algum, o desenvolvimento do meu caráter se deu em meio aos espasmos
de solidão, assim, aprendi a desenhar e a pintar – o que me proporcionou bolsas
de estudos a uma boa educação e, também, boas oportunidades de empregos. Mas eu
não me empenhei em mantê-las, em nenhuma das ocasiões. Analisando hoje, com um
pouco mais de ímpeto e profundidade, percebo que o fato de eu não ter ninguém para
com quem eu pudesse mostrar e me orgulhar das minhas conquistas influenciou
muito à decadência de minha vida e, infelizmente, fiz dessa ausência familiar uma muleta para
apoiar a minha vida preguiçosa e escusa.
Naquela época, já dentro do
reformatório eu ajudava diversos jovens a conquistar a liberdade muito mais
cedo, forjando seus históricos legais e documentos de registro ou adoção. Muitos
não tinham nem pelos pubianos e eram declarados maiores de idade com a
aprovação da vara dos menores. Por isso, quando enfim deixei a clausura
desses lares, aos vinte anos [pois forjei os meus próprios documentos para me manter um pouco mais], meus irmãos de lar me procuraram para mais serviços; e foi assim que desviei meu senso artístico para o ‘detalhismo’ da confecção de
documentos falsos, pois era fácil e rápido – e proporcionava muito dinheiro por poucas horas de trabalho. Sempre que eu era capturado e levado para a
cadeia as provas eram insuficientes para me manter na clausura e eu
voltava para minha casa com ainda mais clientes que me enviavam cartas e mais
cartas de suas celas pedindo a confecção de inúmeros documentos falsos custeados
pelos seus advogados. Advogados que, aliás, deveriam ser os primeiros na
convocação para a guerra como escudos humanos, pois eram bandidos travestidos
de terno e com o dicionário da lei debaixo do braço. Mas, como isso não
aconteceu, eu ainda tive que expedir diversos documentos de laudos médicos que
excluíam a participação da luta na guerra para os comandantes da máfia e para
os ricos arruaceiros do cárcere. A maioria dos laudos acusava doenças sexuais
em estado terminal ou degenerativas, bastando que mafiosos e almofadinhas
encenassem dores segundo as mazelas descritas nos laudos. Em torno de mil
documentos foram legitimamente assinados pelos representantes do estado,
comprovando que nosso país estava realmente se lixando para a saúde de nós
todos, pois nitidamente aqueles marmanjos estavam mais saudáveis que os filhos
e as mães dos funcionários da prisão. De qualquer forma, essa falcatrua me
rendeu uma economia inimaginável para o caso de eu sobreviver à guerra, pois
poderia recomeçar sem preocupação financeira alguma.
Agora era só esperar.
Naquela noite, fiz minhas malas com
apenas três mudas de roupa – tudo que me era permitido ter na cadeia. Não consegui dormir pensando em
como seria a guerra assistida diante dos meus olhos, mas, concluí que era
besteira pensar nisso, pois eu não poderia nem mesmo imaginar o que se passaria
naqueles campos de batalha.
Eram cinco da manhã quando a sirene
soou. Os guardas nos enfileiraram para a contagem final. Fizeram uma oração, tocaram o hino nacional e, por fim, o diretor da penitenciária nos
desejou sorte – como se fôssemos heróis da nação.
Foi a última vez que estive na cadeia em toda minha vida.
No caminho para o ônibus, o exército nos saudou com tiros para o alto, como se fôssemos soldados heroicamente condecorados. Mas a verdade é que esses soldados sabiam que, se fôssemos tratados bem, eles poderiam nos enfiar em qualquer buraco quando a necessidade surgisse – e foi exatamente o que eles fizeram nos campos de batalha, quando precisavam escolher quem morreria primeiro: sempre era um de nós.
Foi a última vez que estive na cadeia em toda minha vida.
No caminho para o ônibus, o exército nos saudou com tiros para o alto, como se fôssemos soldados heroicamente condecorados. Mas a verdade é que esses soldados sabiam que, se fôssemos tratados bem, eles poderiam nos enfiar em qualquer buraco quando a necessidade surgisse – e foi exatamente o que eles fizeram nos campos de batalha, quando precisavam escolher quem morreria primeiro: sempre era um de nós.
Na estrada, a caminho do porto,
escutamos as bandas marciais e os clássicos do Glenn Miller, enquanto apreciávamos
a paisagem do poente azul cobreado. Desembarcamos no porto central do nosso
país e fomos hospedados nos estaleiros com soldados, pilotos e marinheiros que
nos relataram um pouco sobre a atual situação da Ásia e também sobre qual era a
real proposta da guerra. Depois de muito
beberem, os nossos representantes da nação, que estavam embarcados há mais tempo, nos revelaram um pouco sobre o que
consideravam de suma importância para sobrevivência na China, como: onde conseguir ópio; os melhores
prostíbulos; quais restaurantes chineses era possível apreciar a melhor carne de cachorro e os melhores fetos abortados. O burburinho do alvoroço logo
começou ao saberem que havia realmente restaurantes especializados em fetos. Senti asco daqueles caras e me
retirei antes de ouvir os relatos sobre morte por emparedamento, amputação
segmentada, experiências neuropsicológicas e outras torturas aprendidas pelos chinas no
circo da carnificina com seus ancestrais mongóis e indonésios. Para apaziguar a
mente e me livrar dessas recorrências malevolentes do dia, decidi descansar a
veneta procurando o compartimento dos dormitórios. Descobri que no estaleiro as beliches não tinham donos fixos, você devia deitar onde estivesse vago.
Caminhei por alguns minutos e logo encontrei uma cama que parecia ter sido
limpa havia poucos dias. Me deitei e fechei os olhos. Eu estava exausto.
- Ninguém jamais deitou na cama do
Juan depois que ele partiu – escutei uma voz abafada, triste e preguiçosa no
andar de cima do beliche.
Eu não disse nada. Continuei com meus
olhos fechados.
- Você escutou? Essa era a cama do
Juan.
Suspirei profundamente, incomodado. Me
sentei na cama colocando os pés no chão gelado. Quando mirei para o alto,
percebi que havia um cara gigante, de dois metros e vinte de altura, com um semblante amassado
e melancólico e sua barba por fazer.
- O Juan costumava dormir aí embaixo
quando namorávamos – ele resmungou.
Pensei em me levantar, mas as outras
camas não tinham o aspecto tão limpo. “Talvez valha a briga se eu decidir ficar”.
- Ei, você não é de falar muito, não
é. Eu disse que essa cama era...
- Porra, eu já escutei! – enraivecido, bati com
meus braços no colchão.
Ele pulou do beliche e me encarou com
seus olhos enormes e negros. Imaginei que fosse tomar uma surra, então, sem
levantar a guarda, arqueei meu corpo para esperar o ataque do grandão.
- Me desculpe – ele disse esmorecido
– é que faz muito tempo que estou sem o meu Juanzito.
Negaceei com a cabeça, relaxando a
rigidez do corpo.
“Como podem ter colocado um cara
desses na guerra?”, pensei, “não há maldade nenhuma nesse brutamonte de pelúcia”.
- Como é seu nome? – ele emendou.
- No exército não tenho nome.
Ele permaneceu ali, me observando com
sua postura corcunda. Devia ter uns cento e setenta quilos distribuídos em seus dois
metros e vinte de altura.
- Aqui no exército eles me chamam de
Bunda de Urso.
Ri.
- Eu não quero nem imaginar por que –
me deitei virando-me para a parede.
Bunda de Urso voltou para a sua cama escalando pesarosamente seu tamanho naqueles degraus delicados e, depois,
espalhou seu corpo enorme naquela estrutura de madeira estreita e curta. Era
como se ele estivesse deitado numa cama de anões. Enquanto ensaiava meu sono,
escutei algumas pessoas rindo e jogando pôquer aos arredores. Ergui meu pescoço
na direção daquelas vozes. Havia dois caras sentados em suas respectivas camas.
Eles fumavam bastante formando uma nuvem espessa sobre suas cabeças. Numa das
camas, com uma bandeira da Jamaica estendida, havia um negro que falava com a
voz serena do Muddy Waters. Quando ele realizava descartes que considerava geniais sempre dizia
empolgado ‘Balza-ualza’ e balançava o corpo para os lados, como uma cobra
esguia. Do outro lado, um homem de barba grisalha e densa, vestindo um quepe
verde, tragava um cachimbo, enquanto descartava suas cartas, mesmo parecendo
não prestar atenção alguma para o jogo. Às vezes o jamaicano o chamava de
Popeye e repetia em seguida ‘Balza-ualza’. Acompanhei a conversa deles
até a hora em que a sirene tocou. Logo os soldados – que pareciam tiras do
subúrbio – gritaram as ordens do sono e as luzes improvisadas com pavio e cera enegreceram.
Escutei o sono do Bunda de Urso traduzido em roncos cavernosos. Seria uma noite
difícil. Revirei para todos os lados procurando me concentrar em meus olhos
pesados e vermelhos, mas era impossível.
“Como esses caras conseguem dormir
com esse barulho todo que esse cara faz?”.
Depois de muito me revirar, não consegui
nem mesmo cochilar e, por isso, o jeito foi assistir, da pequena janela do
alojamento, à tentativa do nascer do sol invadindo solenemente a escuridão do
horizonte com sua tonalidade de cobre e fogo. Nem mesmo a luz havia dominado as
trevas e as estrelas, as sirenes tocaram, e lá estava eu, de pé, como um zumbi.
Todos se levantaram ao mesmo tempo, enquanto eu ainda tentava focar meus olhos
turvos e alucinados para o chão.
- Bom dia – disse lenta e
preguiçosamente Bunda de Urso – dormiu bem?
Bocejei estirando os braços.
- Sim, como um ursinho.
Ele riu e saiu cantando uma das
músicas da série da Betty Bopp com sua toalha e sua escova de dente nas mãos.
Quando cheguei aos chuveiros, o
regulei para me despertar com água gelada. Não adiantou. Assim que me vesti com o
uniforme de recruta, os soldados nos encaminharam para o café da manhã. Pedi
apenas uma caneca de café puro e fui para o pátio procurar algum lugar onde
pudesse me distrair com o tempo ensolarado. Observei os arredores do estaleiro
e percebi que todos estavam distribuídos em seus pequenos grupos, espalhados
pelos cantos, murmurando sobre os acontecimentos da guerra. Caminhei lentamente sobre
aquelas madeiras de palafita lacustres enquanto tragava minha caneca de café.
Pensei em me enturmar com alguns caras para saber mais informações a respeito
do assunto do dia.
- Balza-ualza, man, você perdeu! - escutei repentinamente. O jamaicano e o Popeye jogavam pôquer sentados em caixotes de munição. Caminhei até eles e me sentei bem próximo, no
chão, recostando na parede. Tentei prestar atenção no que conversavam para
saber se surgiria alguma novidade a respeito da guerra, mas, não demorou muito,
senti meus olhos pesarem e, lentamente, cochilei.
- Ei, esse cara aqui está meditando?
– interromperam meu sono.
- Não sei, Sony, pergunte a ele –
disse Popeye mascando seu cachimbo com o canto dos dentes.
Quando dei por mim, prostrado em
minha frente, havia um cara com os traços de índio nativo da América Central.
Ele devia ser da minha altura, corpo esguio, com dentes amarelos e
sobressalentes. Me fitava piscando agilmente, parecendo ter alguma dificuldade
para enxergar.
- Cara, você está meditando?
Não respondi. E ele insistiu com a pergunta.
- Ei, Sony, deixa o cara em paz! –
vociferou Popeye com sua voz rouca.
- Sei que ele está meditando, ele
está nos caminhos de Buda.
- Não liga para esse cara não –
resmungou Popeye apoiando-se em meu ombro – esse japa está louco.
- Japonês? – não entendi.
- É que meu pai era negro. Ele era
um pirata somali que aportou no Japão. Ele seqüestrou minha mãe e nove meses
depois eu nasci no navio.
- Acho que seu pai era “chicano”,
Sony, fale a verdade – riu Popeye enquanto me sacudia para acompanhá-lo na
comédia. Todos riram, menos eu.
E, assim, de maneira desmedida e
muito espontânea fui introduzido ao grupo pelo velho Popeye.
- Ei, Buda, você acabou de escutar a
história do Sony e provavelmente ele ainda a repetirá umas duzentas vezes
enquanto você estiver aqui conosco. Esse daqui é meu parceiro de histórias e pôquer, o
Kingston. O chamamos assim porque ele vem da Jamaica. Eu sou o Popeye, por motivos
óbvios - disse apontando para o seu cachimbo e seu queixo sobressalente. E esse é o estaleiro que aguardamos o dia que iremos para o inferno.
- Você quer dizer, para guerra – interrompeu
Sony.
- Da na mesma, em se tratando dos
chinas – Popeye cuspiu no chão.
Eles riram. Permaneceram ali jogando
pôquer até o horário do almoço. Eu adormeci novamente recostado na parede até
a hora em que a sirene nos impeliu para irmos definitivamente ao refeitório. O
serviço era ágil e simples, pois a comida era igual para todos: arroz, batatas
e peixe. Após o rango voltamos aos nossos lugares, no pátio. Fomos informados
por um dos comandantes da marinha que seríamos listados à nossa ordem de serviço
na guerra em duas horas. Enquanto esperava, assisti às partidas incansáveis de
Kingston e Popeye; Sony, ao meu lado, discursava sobre os caminhos de Buda; embora eu não me importasse, Popeye e Kingston, já estavam aporrinhado com a história de
meditação, que deveriam escutar todos os dias, há muito tempo.
- Cala boca, Sony, ou então vamos
colocar você para dormir com o Bunda de Urso – disse Kingston.
Sony, imediatamente, se silenciou e,
em seguida, saiu da nossa vista inventando uma desculpa de que precisava ir aos
dormitórios. Curioso, perguntei aos caras porque Sony tinha medo do Bunda de
Urso. Kingston riu.
- Balza-ualza, man! Uma vez o Sony
apanhou do Bunda de Urso por se meter com Juanzito.
- Juanzito? – insisti.
- É. Dom Juan. Era um negrinho de New
Orleans, um e cinqüenta e cinco de altura, que gostava de trepar com os gays e os
travestis do estaleiro. Mas ai ele conheceu o Bunda de Urso e eles namoraram até o dia em
que o nobre Juanzito, rei do romance, morreu de sífilis.
- É. E o Bunda de Urso despirocou das
idéias desde então – completou Popeye.
- Mas e o que tem a ver o Sony com
tudo isso? – redargüi.
- Cara, o que acontece é que, quando
Juanzito foi recrutado, ele dividia a beliche com o Sony. Eles não eram
namorados, mas eram muito amigos. E, ai, quando o Juanzito começou a namorar o
Bunda de Urso, ele abandonou o Sony e foi compartilhar a cama com o seu
namorado peludo, mas, às vezes, o Sony ia lá importuná-los no meio da noite, em nome da velha amizade.
Nisso, o Bunda de Urso ficava furioso e, um dia, com a cuca quente, ele encheu
o Sony de porrada.
- Por isso ele ficou com os dentes
daquele jeito... – riu Kingston – a porrada foi forte.
Lá longe, vi o pequeno Sony passar ligeiro
por entre as escadas da chaminé e adentrar os dormitórios como um camundongo
ágil e faceiro. Negaceei com a cabeça, pois eu estava um pouco decepcionado com
a vida daquele japa. Pensei em ir conversar com ele, para saber mais
de sua história, mas, nesse mesmo momento, a sirene tocou. Conforme as ordens Popeye, Kingston, eu – e mais uma porrada de gente – fomos enfileirados. E, de acordo com a ordem das filas, nossos destinos seriam traçados rumo às trincheiras da China.
- Soldados, vocês vão entrar na China
pelo Himalaia. O avião vai embarcá-los em uma hora. Preparem-se! – gritou o
comandante apontando à nossa fila.
Quando volvi meus olhos para o final
daquela linha de gente, percebi que lá na extremidade direita estava também o
Bunda de Urso. Mas, infelizmente, eu não havia visto o Sony.
Preparamos nossas malas e vestimos o
uniforme completo. Fomos embarcados em um ônibus no porto e levados para o vôo
ao Himalaia. Ao chegar na pista acidentada das aeronaves, nos empunharam de
mochilas com pára-quedas e com uma espingarda para cada um.
- É o suficiente para matar os
amarelos. Boa sorte – diziam todos.
Um a um fomos embarcados no avião
cargueiro. Durante o vôo, descobri que nenhum de nós fora efetivamente treinado
em nada, pois disseram que já sabíamos tudo. Popeye gargalhou com seu cachimbo
na boca:
- Kingston e eu usamos uma dessas gracinhas
para matar os policias que nos pararam com o contrabando de munições há três
anos atrás. Fácil de usar. Lembra, King?
Enquanto narravam o incidente dos
policiais da rodoviária, eles me ensinaram os macetes do gatilho e da
empunhadura, pois eu nunca manuseara uma arma na minha vida. Repliquei os
movimentos enquanto eles avaliavam segundo as suas experiências das ruas.
“Espero jamais precisar atirar com essa merda”, balbuciei para mim mesmo, mas
garanti que realmente havia aprendido para o caso de chegar o dia de eu
precisar atirar.
Enquanto atravessávamos o oceano,
depois de três horas de vôo, fomos informados de uma missão de emergência que
desviaria em muito a nossa rota inicial. Deveríamos primeiramente pousar no
Paquistão e ajudar a base aliada que corria perigo de contra-ataque. Não havia
dia para cessar o nosso apoio de forças, segundo relatou o comandante do rádio.
Retraçamos a rota e lá fomos nós ao Paquistão. Era manhã quando chegamos
naquelas florestas verde musgo. Desembarcamos rapidamente, ainda escutando os
barulhos das turbinas do cargueiro.
- Chegou sua hora de rifar esses
chinas morenos da face da Terra – sentenciou Popeye cuspindo no chão – não nos
decepcione.
Nos lançamos para o meio da mata escutando
às ordens da base vindas pelo rádio no pescoço do Popeye. Encontramos
facilmente – após seguirmos às coordenadas eximias e detalhadas – um vilarejo
que diziam ser dos rebeldes da milícia. Invadimos. Como um mero espectador,
assisti àqueles caras matarem homens, mulheres e crianças sem nem mesmo pestanejar.
A ordem era aniquilar o que fosse amarelo, marrom avermelhado e de olhos
puxados. E os vi fazerem dessa ordem um circo boçal de carnificina: não
reconheciam nada além das máscaras de traços étnicos como alvos vivos. Vilas e
mais vilas foram dizimadas sem deixar vestígios de suas existências. Ao final, as
casas de bambu e barro eram incineradas para evidenciar que nada ficaria de pé
com a ação de nosso país.
Assim como eu, Bunda de Urso nem
sequer sabia o que fazia ali. Para piorar a situação, passei a andar com a guarda-baixa,
alheio a toda situação. Seguia Kingston e o Popeye que atiravam para qualquer
direção rindo e blasfemando a tudo que viam ao redor.
- Morram comedores de cachorro! –
gritavam.
À noite, decidimos descansar num
vilarejo abandonado pelos avisos de horror causados pelo nosso fronte. Popeye e
Kingston estudavam suas armas, enquanto os demais soldados falavam de quantos
haviam matado naquele dia. Bunda de Urso e eu observávamos os urros afoitos dos
soldados do nosso fronte, enquanto ele e eu nos aquecíamos diante do fogo.
Antes de me deitar, nas redes armadas dentro dos cômodos de barro e bambu,
lavei meu rosto e, pela primeira vez, o odor de pólvora e sangue consumiu minhas têmporas. Não consegui dormir. Os gritos das mulheres e das crianças
paquistanesas ecoavam para fora dos meus pensamentos, chegando
à curva do meu ouvido e então ressoavam vezes e vezes, aumentando o meu remorso
de cumplicidade.
A sensação era de que a guerra não
teria fim.
Essa sensação se confirmou. Nos
dias seguintes a alienação para o ideal de guerra havia se tornado uma febre
convulsiva, pois nem sequer tínhamos mais informações de geografia e de
demografia – mas, também, já não nos importávamos com isso – e apenas escutávamos
do rádio o grito do comandante fornecendo informações sobre potenciais bases inimigas que deveríamos
aniquilar nas operações. Essas bases, na maioria das vezes, eram apenas tribos
de pessoas singelas e comuns. Mas, mesmo assim, nosso exército não perdia a
viagem.
Já havíamos dominado e dizimado
grande parte do sul paquistanês, e, por isso, recebemos ordens de embarcamos
para as cordilheiras do Himalaia e entrar, definitivamente, no sul da China.
Naquela mesma noite embarcamos no
avião cargueiro. Vangloriava-nos de não ter perdido nenhum soldado; de ninguém do
ter ficado gravemente ferido. Orgulhosos da empreitada do ofício, contávamos o numero de pessoas que havíamos
matado naqueles dias.
- E você, Buda, quantos matou?
Antes que eu pudesse pensar em algum
número mentiroso, escutamos um estrondo do lado esquerdo das turbinas, seguido
de uma intensa luz incandescente. Alguns dos soldados morreram instantaneamente, pois estavam relaxados por comemorarem a vitória precocemente. Outros – assim
como eu – ficaram momentaneamente surdos e perderam a noção do espaço,
decorrentes da comoção do abalo. Quando enfim me recompus, corri na direção da
fumaça e percebi que a turbina esquerda havia sido completamente avariada. Não
conseguiríamos sustentar o vôo por muito tempo.
É difícil descrever o que vi dentro
dos compartimentos daquele enorme cilindro de ferro. Soldados gritando, urrando
e implorando pela salvação de deuses que até então não acreditavam. O desespero
era tamanho que, mesmo com a audição deficiente pelo estrondo do motor, lembro-me
perfeitamente de escutar soldados, ajoelhados, implorando e gritando por Jesus
Cristo, por Krishna, por Shiva, por Buda, por uma infinidade de deuses que foram calados a
bala e a muita tortura há poucos dias atrás nas terras paquistanesas. Ao
adentrar um dos compartimentos, vi que Kingston e Popeye se abraçavam, eles
choravam muito. Quis chegar até eles e confortá-los do desespero, mas fui
derrubado pelo Bunda de Urso que correu como um bebê perdido para o local da
explosão, e percebendo que não haveria saída, ele mergulhou para a morte.
Já não havia mais nada a ser feito. Me
sentei e esperei.
Os gritos se tornaram ensurdecedores à
medida que sentia o avião cada vez mais próximo do solo e, logo, eu já estava completamente
surdo.
Cerrei meus olhos.
Senti uma luz clara como um raio penetrar minhas pálpebras e uma onda de calor se dissolver em meu corpo.
Senti uma luz clara como um raio penetrar minhas pálpebras e uma onda de calor se dissolver em meu corpo.
Houve um silêncio. Uma ausência de
tempo. De espaço...
Não me lembro de mais nada em relação
ao acidente. Recordo-me apenas de ter acordado trinta metros distante dos
restos da aeronave ainda em chamas. Meu corpo parecia estar inflamado devido ao
entorpecimento do abalo. Eu ainda sentia minhas pernas e meus braços, podia
movimentá-los enfim, mas não conseguia me levantar. Ao longe, escutei ainda
gritos agonizantes e desesperados de socorro. Reconheci aquela voz preguiçosa e
abafada.
“Bunda de Urso ainda está vivo, ele
ainda está vivo!”. Tentei gritá-lo, mas meu peito não tinha voz. Apenas
escutei Bunda de Urso chorar e urrar para a neblina do Himalaia, até sua voz
sumir da existência da Terra.
- Juan, me ajude. Me ajude, meu amor
– era como um bebê abandonado, era como uma esposa sem marido.
Chorei. Senti o cheiro de pólvora e de
sangue se tornar mais intenso com a mistura de querosene e de metais estalando
em meio as chamas. Minha fraqueza, conseqüente do desespero sofrido pelo cataclísmico,
me desfaleceu mais uma vez, e por cerca de sete horas permaneci desacordado.
Quando recobrei minha consciência, senti o frio da noite que amanhecia lentamente
no horizonte do Himalaia. O lume dos metais e dos corpos carbonizados ainda
jazia em contraste com a penumbra do fim da noite. Me lembrei do Bunda de Urso
e pensei em dar um último adeus... mas de nada ia adiantar.
- Ele já encontrou Juanzito.
Permaneci deitado, me lembrando
daqueles figuras que conheci no estaleiro. Onde estaria Kingston? e Popeye?
Choraminguei no meu desespero surdo e inaudito enquanto me levantava lentamente.
Olhei ao redor e não vi nem mesmo um vulto semelhante à imagem de ser humano.
Tudo estava carbonizado. Sem pensar nas conseqüências, tomei minha decisão de
continuar e caminhei mantendo apenas uma direção: para frente. Por vezes,
abraçando árvores ou pedras, adormeci exausto – uma tentativa fisiológica para
sentir menos fome, menos dor. Ao passo de quatro horas adentrei uma
região plana, sem árvores. Um vale verdejante de mata virgem. Eu sabia que ali
por perto poderia existir um povoado. Como um morcego, agucei minha audição e
pude escutar os galhos estalarem; os pássaros cantarem, o vento assoviar.
Pela primeira vez senti medo da
solidão.
Imaginei que alguma besta silvestre
pudesse sentir o odor do meu sangue e me devorar sem nem mesmo se importar com
o gosto de querosene. Desejei ter morrido na explosão da turbina, numa parada
cardíaca durante a queda como resultado do medo ou mesmo sendo carbonizado
vivo. Chorei mais uma vez. Solucei meu sibilo para o eco da paisagem solitária.
O temor da minha alma ressoou pelas planícies e vales do Himalaia servindo de
aviso para as feras bestiais que se aproveitariam do meu corpo inerte e
agonizante.
- Escapei da queda para morrer de
fome e de fraqueza.
Volvi para mim mesmo, refletindo
sobre a minha vida até ali, naquele momento. Não havia muito para se orgulhar,
admito. Mas, se arrepender também levaria tempo. E tempo é uma coisa que não
tenho mais. Não mais.
Lembrei-me da família que não tive, da
profissão que não segui, do futuro que não construí...
- ... da vida que não vivi.
A verdade é que eu já estava morto e
não sabia.
- Uma pessoa que não vive só pode
estar morta.
Meus olhos inundaram. Na minha mente,
lembrei-me dos tempos do reformatório e do colégio interno. Dos meus anos de
clausura. Sempre estive preso. Preso a mim mesmo.
- Me liberto agora de tudo que fui...
Já não sentia mais o ardor torpe e flamejante
provocado pela coagulação do querosene ao sangue. Meu corpo tremulava como um
estandarte. Meu âmago ascendia. O vento contornava a altura da minha derme enegrecida,
como que envolvendo as arestas da minha alma, para além da carne, das
articulações e dos nervos, das ligações nervosas e consangüíneas. Eu sabia... já
não era mais um conglomerado de matéria, uma justaposição de hipóteses
físico-químicas. Algo dentro de mim resplandecia e, embora meu corpo inane e
repleto de afasia ainda estivesse ali, já não havia mais limites para o meu
ser. Por isso, eu me levantei. Me levantei e prossegui na retidão do vale,
transpassando o vento, as árvores, as pedras, tudo ao meu redor, nos acidentes
do Himalaia. Hesitei os passos. Era necessário dizer adeus a tudo que ficou
para trás. E foi o que fiz...
Quando volvi meus olhos na direção do
passado, vi meu corpo ainda inerte, rijo e teso, desabando lentamente contra a grama verde musgo. Ele conservava uma expressão tranqüila de alegria e paz. Paz que eu
nunca pensei que existisse.
- Adeus.
Chocante e belo. Você me fez estar lá.
ResponderExcluir- valeu Badá! Fico muito contente que tenha gostado.
ExcluirGrande abraço!
"em nome do amor ao patriotismo eqüino" eu ri HAHAHA.
ResponderExcluirsuas ironias são tão enfeitadas, se passar seu texto pra algumas pessoas que eu conheço, vai ficar um (?) eterno!!!!
btw, seus contos, sempre me envolvem... acho q eu seria uma dessas pessas que compraria fácil, um livro seu.
pq além de desenvolver o texto, vc faz algo que adoro... grandes finais.
=**
- que bom que você gosta dos finais, Ana.
ExcluirE também das metáforas. Saiba que também é sempre bom lê-la!
grande abraço!
Li este teu conto de um só fôlego.
ResponderExcluirÉ incrível como descreves tão bem a guerra, as personagens que vais dando a conhecer parecem existir mesmo. O inicio do conto mostra como o Homem, entregue à sua esputipez, desencadeia lutas desnecessárias, sem ganhos, só com perdas.
No fim, a revelação: "- Uma pessoa que não vive só pode estar morta."
Beijo
LauraAlberto
[Gostaria de agradecer o comentário que deixaste no blogue, e por me dares a conhecer o Mestre Masaharu, bem haja]
- olá, querida Laura!
ExcluirSempre bom vê-la por aqui. Não precisa agradecer pelo comentário e nem mesmo pela indicação do grande Mestre Masaharu Taniguchi. Fique a vontade para falar comigo quando quiser.
ps: e realmente, quando não vivemos, experienciamos [experimentamos], e permanecemos na inércia dos dias, desperdiçamos um dia maravilhoso, que não volta. por isso é sempre bom darmos o melhor de nós mesmos.
Muito bom, muito bom mesmo! Uma leitura bastante necessária. Sabe, também acredito na reversão... A guerra, por vezes, gera o entendimento sobre a paz. Uma mata, outra, brota.
ResponderExcluirbjs
- para fazer paz, falemos de paz, não é mesmo, Elisa?
ExcluirVocê é um dos melhores escritores que pude conhecer através do blog. Você escreve muito bem e descreve situações, cenários e pessoas de uma forma que consigo imaginar exatamente. Seus textos são muito reais hahahahaa, admiro muito isso! Quanto mais real, mais verdadeira a história. Não gosto de guerras e sou muito paz e amor. Talvez eu seja emocional demais para lidar com este tipo de coisa. Ou fraca mesmo HAHAHAHA
ResponderExcluirObrigada pelo carinho com o blog e volte sempre aquariano as avessas ha
Abraços ^^
- muito obrigado pelo elogio, Juliana. Fico muito contente em saber que você gosta dos escritos. Sabendo que há pessoas que gostam de ler, continuarei a publicar. Sempre.
Excluirps: Saiba que não existe fraqueza, quando existe emoção.
E com certeza voltarei mais vezes ao seu blog. Abraços.
Obrigada você, Luis, pelas interpretações que faz dos meus textos.
ResponderExcluirGosto bastante desse específico universo virtual que estamos inseridos e a troca que ele nos proporciona. Os pensamentos circulam e nos fazem refletir cada vez mais sobre tudo que nos cerca.
Bjos
- nunca é pesaroso interpretá-los, na verdade é muito bom, admito. esse universo de blogs realmente nos revela sempre pequenos fragmentos do todo.
Excluir