para entender, é necessário ler o primeiro e o segundo capítulos:
Verdade que a
morte tem uma característica enigmática, que nos exorta ao significado da
essência. Para mim nascer e morrer têm o mesmo peso e a mesma face. É como o
Sol que presenciamos nascer nesta manhã. Ao aparecer deste lado, recolhendo
inteiramente sua luz do leste, deixando os orientais na penumbra do existir, não
significa que o Sol morrera, mas sim que concluíra um ciclo para iniciar outro.
Nascer. Renascer. De forma original e única, sem, no entanto, deixar de ser o
que se foi. O Sol, mesmo sendo um, aparenta ter uma vida dupla e dissociada de
si mesmo. Tudo depende da perspectiva dos ocidentais e dos orientais. É o velho
movimento que chamamos de cíclico. O ciclo da eternidade. É... paradoxalmente,
a eternidade é um ciclo.
Talvez esse
ciclo dependa da construção e da desconstrução que fazemos de nós mesmos e da nossa
posição no mundo, no eixo de nossas próprias vidas. Think of you, for instance, laying down by my side, e vejo o quanto
tem acumulado dentro de si questões sobre ser e existir. Questões que
invariavelmente a amedrontam porque você não consegue preencher o espaço que
existe em seu coração somente com o raciocínio maquinal, cerebral. E quando
pensa sobre a vida, atribui a ela significados biológicos e químicos que pouco
se conectam com o que você verdadeiramente é. Me espanta a perspectiva de
sermos iguais biológica e quimicamente, mas mesmo assim manifestarmo-nos
psicológica e anatomicamente com atributos diferentes um do outro. Ora, isto já
me é suficiente para assumir uma postura cética em relação a razão e abandonar
a ideia de que Deus joga dados.
Na concepção
da figura de um Deus, não cabe a perspectiva de um senhor barbudo, pseudo-humano,
que conjectura o desenho da vida no tear do tempo e do espaço com os fios de
sua barba grisalha e longeva. Não cabe a concepção de um ser que mede a vida na
ampulheta que montou com os grãos de areia do Universo e que – dizem –
insinua-se através de pequenos milagres para aqueles que acreditam. De novo,
acreditar significa confiar pela razão. Não há nada que precise ser acreditado
nessa vida. A vida é, simplesmente. E
minha convicção acerca de ser aumenta
quando percebo que temos a tendência de transmutar nossas respostas, nossos
conceitos de verdade e de realidade, alegando que toda resposta é, de certa
forma temporária, pois amadurecemos. Verdade. Em partes. Mas há verdade. Acho
que compreendo a temporariedade das coisas, sobretudo quando observo o ciclo da
eternidade agindo sobre mim. Sobre o tempo. Sobre o espaço. Sei que pode soar
loucamente cômico dizer que o espaço e o tempo são temporários. Mas ao pensar a
respeito do tempo e do espaço, influo que ambos são sentimentos que temos em
relação à percepção da vida quando inseridos no ciclo da eternidade.
- Life am... – balbuciei, rindo de minha
conclusão solitária.
- That is
possibly what it all means. Amness... – você respondeu.
E em seguida, girou o corpo para o meu lado. Estávamos face a face. Você me
olhava, ao que parecia, minuciosamente, detendo-se as expressões dos meus
olhos, da minha boca e do meu nariz. Eu
podia sentir sua respiração profunda enquanto a fitava deitada sobre seus
braços.
Prometi a mim
mesmo que gravaria aquele momento até o final da vida. E por isso, permaneci
ali, recostado ao travesseiro dos meus braços, compenetrado à oração de
contemplar sua palidez melancólica, seus lábios carmim e seus cabelos cor de
sépia.
- … Like an awakening, in the morning, em que
nunca sabemos, exatamente, quando terminamos um sonho e começamos com a
realidade – concluiu.
Hipnotizado
pelo oceano de seus olhos, deixei-me conduzir para dentro de suas memórias
naufragas, assim pude compreender um pouco de sua melancolia. Os dias
solitários que se disfarçaram de companheiros, e sempre traziam consigo a
companhia do vazio. Por vezes, assim como hoje, me pareceu que a busca pelo
sono era sempre um refúgio para amainar a presença da constante solidão.
Pareceu-me também que minha presença ali era mero refúgio teu. Entretanto, não
poderia ser somente esta a impressão, uma vez que refugiar-se no outro é também
se encontrar, mesmo que não aceite inteiramente o que se vê. E toda esta
reflexão sobre você – e como o observador do que temos passado até aqui – me
faz lembrar dos dilemas que persistem em mim e que talvez sejam semelhantes.
Daquilo tudo que questiono e que me intriga sobre ser e existir.
- Ei! Você
podia me levar para ver algumas de suas telas no Kensington Market. Queria ver
a sua arte.
- Do you
wanna do it now? Acho que
seria legal se fôssemos agora de manhã. Kensington é sempre mais tranquila a
essa hora do dia. Além disso – acrescentei, apoiando-me sobre meus cotovelos,
ainda deitado – estou mesmo precisando saber se o pessoal do Wanda’s vendeu
algum de meus trabalhos essa semana... além de precisar comprar uma hoddie.
- E você vai
comprar sua hoodie em Kensington? OK… that I
really wanna see!
- Hey... Qual o problema? – respondi
acompanhando-a no riso – eles têm hoodies
sensacionais na Exile. Desde quando
cheguei aqui, minhas roupas sempre vieram de lá.
- I just wanna
see it, OK!? Muito embora você não se vista como os rastafáris de Eglington eu
ainda quero ver o local em que você compra suas roupas.
Novamente você
riu.
Vê-la rindo
depois dos momentos da longa madrugada me fez pensar que valera a pena. Não era
possível imaginar quanto tempo duraria seu bom humor, por isso, eu estava
disposto a ajuda-la registrar alguns momentos alegres, mesmo que por um dos
cinquenta e dois fins de semana do ano.
- C’mon! Let’s go, rastaboy! – gritou
você me tragando de volta para a realidade.
Descemos as
escadas do prédio escutando o ruído sufocado das portas corta fogo que se fechavam
às nossas costas, intercalado ao seu solo vocal de uma música que eu
desconhecia.
- O que você
está cantando?
- About Today.
Dei de
ombros.
- Here, pegue meu fone. Escute isso.
Ela então
reiniciou a música e nos sentamos na escada do quarto andar para escutar a
música.
Today you were far away
And I didn't ask you why
What could I say, I was far away
And I didn't ask you why
What could I say, I was far away
You just walked away
And I just watched you
What could I say
And I just watched you
What could I say
How close am I to losing you
Tonight you just close your eyes
And I just watch you
And I just watch you
Slip away
How close am I to losing you
How close am I to losing you
- Hey, are you awake
- Yeah I'm right here
- Well can I ask you about today
How close am I to losing you
How close am I to losing
- Yeah I'm right here
- Well can I ask you about today
How close am I to losing you
How close am I to losing
Quando a
música acabou, tive vontade de dizer “You
are not losing me, darling”, mas não havia coragem dentro de mim. E tudo
que pude fazer foi observá-la, longamente, e notar a palidez de sua pele, seu
sorriso triste e seu olhar distante e perdido.
- Quando estou com você... tenho a
impressão de que as paredes contam histórias, de que elas mostram cenas...
Gostaria de ser capaz de escutar essas histórias, de assistir a essas cenas.
- You would not
like it, honey
– desabafou levantando-se – We should get
going…
Levantamos
em silêncio e embarcamos no streetcar
para Kensington.
Honestly, uma das coisas que
mais gosto em Toronto são os streetcars.
Me sinto como se estivesse num retrato vivo da década de 30. Exceto quando
passo por China Town. Ali não tem como eu me sentir no passado. China Town é
diferente. O cheiro é diferente. As pessoas são diferentes – não porque são
chinesas – mas em humor e em atitude. Além do eterno aspecto junkie. São Paulo is also like that! That’s why I love Sampa!
- Hey, vamos descer na próxima parada, OK?
Lá fora, o
dia estava lindo. O sol de setembro é sempre mais ameno, no entanto o mais
agradável. Nessa época não há muitas pessoas na rua. O verão está perto do fim.
As crianças, de volta à escola. Os turistas retornam para casa, para fugir do
inverno de Toronto.
Descemos
na parada ao final de China Town e entramos em Kensington.
- Adoro
aquela parede com a pintura da Mona Lisa. Parece que o Leonardo Da Vinci a
adaptou para a atualidade. Hope they keep
it for years.
- Verdade.
Essa reprodução é demais! – emendei – Assim como o carro de plantas, em frente
ao Wanda’s. Gostaria de saber como aqueles caras mantêm aquele carro.
- Simples – you
added – o pub em frente, they support
it!
- Eu não
sabia disso – conclui enquanto entrávamos na Exile.
Confesso
que não conheci nenhuma thrift shop
como essa. Nem mesmo no Brasil encontrava roupas tão interessantes e duráveis.
E olha que eu vivia em brechós.
- Você
sempre compra suas roupas em thrift
shops?
- Sim. Eu
prefiro. Não pela diferença de preço – até porque, atualmente, os geeks, hispters e os turistas fizeram
com que tudo isso se tornasse um mercado cult
– mas sim pela qualidade. Veja – argumentei apontando para um jeans da Levi's
fabricado em 1998 – já deve ter sido lavado pra caramba e mesmo assim it is brand new! It will take decades to discolor. E o melhor de tudo: my size!
- Seems fair
enough. Take
it!
E você? –
perguntei enquanto separava o old-new
jeans da Levi's – não me parece que compra suas roupas na Forever21?
- No! Not at all! – sorriu
enquanto observava os hangers com
vestidos listrados - A maioria das minhas roupas eu mesma faço ou as compro na
Orfus Road. Cheap. Durable. That is enough for me.
- Não conheço Orfus Road.
- Um dia, eu
o levo até lá! Not a long walk from Lawrence West
station.
- Ok.
Ficarei feliz de ir com você.
Detive-me por
alguns segundos, olhando-a e imaginando o dia em que poderia sair com ela – não
necessariamente às compras – mas como her
boyfriend.
- E a hoodie? Não vai mais levar? - disse
virando-se para mim, quebrando minha hipnose.
- Oh, hun... Claro que sim – por alguns
segundos, nem mesmo me recordava em que corredor estavam as hoddies – Mas não demorarei muito. Quero
algo simples.
- OK! So,
do you mind, se eu continuar olhando mais algumas coisas?
- Não, de
forma alguma, take your time!
- Sozinho,
enquanto adentrava o corredor das blusas, pensei aonde poderia levá-la a fim de
se distrair de seu humor renascentista. Nada me ocorria. Busquei dezenas de
cenários, mas sempre que imaginava você como parte do enredo naturalmente a
atmosfera se transformava em buscolismo e aflição. Foi quando me ocorreu que
poderíamos visitar a CN Tower, perto do horário em que eles fecham a
bilheteria. Assim poderíamos apreciar o pôr-do-sol do monumento histórico mais
alto de Toronto. Beatufiul. Romantic.
Extasiado
pela idéia, corri para contá-la, mas não a encontrei na seção feminina.
Procurei-a na seção dos jeans, mas também não a vi por lá. Preocupado, fui até a clerk.
- Hey, please,
did you see the girl that was with me? Did she get anywhere around?
- No, man, I am
sorry.
Fuck! Decidi esperar alguns
minutos na esperança dela ter saído apenas para buscar um rápido café... mas
não... ela não retornou. Corri pelos becos de Kensington: procurei em cafés,
pubs, galerias... mas nenhum sinal dela.
- Maybe she’s at Wanda’s – disse a mim
mesmo. De fato, ela poderia ter ido para lá no intuito de me surpeender ao
vê-la admirando minhas telas. Corri o mais rápido que pude, na confiança desta
verdade. Ao abrir a porta, não vi você e não vi minhas telas.
- Hey... Was
looking for you!
Era a manager, para minha frustração.
- Your canvas
were incredibly sold this week. Permaneci
em silêncio, desapontado por não encontrá-la por ali.
- Is there
anything wrong? – a manager
perguntou embaraçada – you do not seem very
happy, even after I had just announced that we sold your five works that was
hanging here?
Sorry… – disse, enquanto me recompunha da
confusão – that is nothing about the
sale, I am really sorry! O fato é que eu estava
aturdido, não sabia o que podia fazer para encontrá-la. E não estava a fim de
escutar nada sobre vendas naquele momento.
- Hey... Did you
see any brunette girl, dressed in black, rather pale and pretty good-looking?
- Nope. Why? Is
there anything I can help you out?
Rendido
pela desesperança de reencontrá-la nos allies
de Kensington, fiz o caminho de volta para a rua do apartamento. Perguntei para
algumas pessoas do prédio se haviam visto você, mas nenhuma delas parecia, de
fato, conhecê-la. “Don’t know anyone like
that”, diziam.
No caminho
pela Le Avenue, voltei aos becos na
tentativa de procurá-la no local em que tomamos café e falamos sobre a vida.
Nada. Estranhamente, não reconheci nem mesmo o cenário antique de Quebéc rodeados por seus pilares luminares e suas folhas
virentes. Era como se tudo tivesse se exaurido, resultado de uma miragem, de um
sonho. Desolado e triste, prossegui com meus passos peregrinos para o harbourfront e me sentei no mesmo banco
em que você me supreendera na noite anterior. Esperei, uma vez mais... e de
novo, nada aconteceu. As ondas quebravam, lentas e sobressalentes, como se quisessem
derramar para fora das margens do harbourfront.
Naquela cena anacoreta, deixe-me violar pelos sentimentos profundos... Meus
olhos marejaram. Senti o meu peito doer.
Dentro de
mim... a ausência de você.
- OK... last try, I swear! – confessei enquanto caminhava em direção ao pub em que
nos encontramos pela primeira vez. Ansioso e ofegante a cada passada que
diminuia a distância do pub. Ao alcançar a porta, olhei em volta. Seus amigos
estavam lá... mas não você. Decidi ir até eles... talvez tivessem alguma pista
sobre onde estaria, enfim.
- Guys... preciso falar com a amiga de
vocês? Onde ela está?
Desconfiados,
negaciaram com a cabeça...
– What the fuck
you are talking about, man?
- Preciso
falar com a amiga de vocês...
- There is no
friend of ours! –
me interrompeu alterando a voz.
- Vocês
estão loucos? Eu sai daqui, ontem, com a amiga de vocês. Onde ela está? – gritei.
- Man,
please... Listen! You are messed up! The girl you are referring to… She was
your girlfriend, remember? She commited suicide two years ago, right after you
came from that trip from Sao Paulo. I am sorry man… but there is no girl from
yesterday. she is gone.
Flashes passaram pela minha
mente cansada. Você...
- Please,
forgive yourself… that is not your fault… – disseram, na tentativa de me
consolar – the manager from Wanda’s told
us that you had freaked out again. Come on, let us go. We are going to take you
back to your spot.
Enquanto
era levado para minha casa, tentaram me explicar aquilo que eu ainda não
compreendia, mas que deveria saber; disseram-me, inclusive, que esta não fora a
primeira vez que o surto os preocupava. Numa das últimas vezes, me encontraram
na CN Tower, admiriando o por-do-sol, numa conversa solitária com as janelas.
...
recobrar minha consciência desse grande desatino. De você... Desse paradoxo que
me faz sentí-la, vê-la e até mesmo discutir com você sobre a vida, sobre nós.
- Do you have
the keys?
A porta do
78 se abriu. O silêncio irrompeu em meus ouvidos. Mais uma vez, as lembranças de
você. De nós dois. Suas colagens na parede, de momentos nossos, ainda quando
nos conhecemos na OCAD – e pensar que por sua causa, mudei de Business Administration para Fine Arts.
- Hey, man. Do
you want us to stay with you for a while?
- No, I am fine – repliquei monótono.
Passeei
pelos cômodos revérberos de sua voz. Sabe... me é difícil acreditar que este
apartamento é meu – e que um dia foi nosso.
- Look, man… we
will replace you tonight at the pub, OK? So you use our shift to play tomorrow,
agreed?
Assenti com a cabeça.
- Take care,
man… - disseram enquanto saiam pela porta – see
you around.
Até onde
me recobro dessas memórias insólitas, essa não foi a primeira vez que surtei
dessa forma. Já havia sido “resgatado” outras vezes nas esquinas de Dundas, em
frente ao ROM, nas Ferries de Toronto Islands ou no Tim Hortons de
Spadina.
- Fuck... Can’t
live like that.
Esfreguei
as mãos no rosto. Fitei o teto branco, buscando respostas, buscando você... em
mim. Chorei as nossas lembranças. Lembrei-me do dia em que partiu. Quando
encontrei seu bilhete triste e ainda úmido com suas lágrimas da escrita
sôfrega, dúbia e que, às vezes, parecia relutante em aceitar a decisão da
morte. Morte por escolha. Fraqueza ou coragem?
No fim...
um “EU TE AMO” em letras garrafais e desproporcionais ao sua confissão de amor
verdadeiro.
Você
morreu.
Amor
verdadeiro?
Percebo
que esses delírios representam a culpa – sem reparação – que sinto por não
aceitar o fato de você se lançar num voo solitário daqui do sétimo andar.
- Chega! I had enough!
Me
levantei e sai. Bati a porta atrás de mim no triste intuito de calar a voz
revérbera de seus risos, que ainda ecoam na sala, no quarto, na cozinha e no
banheiro do apartmento 78, do sétimo andar.
Rumo ao
pub. Não podia deixar os caras tocarem por mim. Eles não tinham culpa. A
responsabilidade de seguir a vida é minha. E somente minha! No caminho, resisti
aos locais que ainda traziam a memória de você. Mesmo assim, os odores e as
cores ainda me traziam sua lembrança. Sua vivida lembrança. Resisti.
Quando
cheguei ao pub, os caras ainda terminavam de regular e afinar os instrumentos.
- Don’t worry,
guys. I
can manage it! – sussurrei com os olhos marejados.
- Are you, sure? – assenti
com a cabeça, sem dizer nada mais, para engolir a maré de meus olhos.
Eles então me deixaram no palco, em mais uma oportunidade tenra de me redimir perante eu mesmo.
Eles então me deixaram no palco, em mais uma oportunidade tenra de me redimir perante eu mesmo.
Me sentei
no mesmo banco das noites antigas. Cerrei meus olhos e, sem nem mesmo cumprimentar as pessoas da casa, prossegui:
- Well, tonight, my set list will be short. Will just need thirty minutes.
Os acordes soaram
tristes, minha voz pesada e de pouca reverberação iniciaram a canção:
“We chase misprinted
lies...”
Seria demais chamá-la para sair comigo?
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