Kaori fechou os olhos e suspirou
profundamente. Permaneceu assim por algum tempo, imaginando que estava em um lugar
calmo e com um grande rio de correntes e vértices infinitos. Era tudo muito
fresco e tranquilo. Com ela estava Rocco, seu cãozinho de estimação. Ao redor
do rio havia muitas árvores e, algumas delas, eram curiosamente folheadas de
rosa, de troncos escuros e robustos. Kaori as observou por bastante tempo e
percebeu que delas nasciam, quase que instantaneamente, frutos de diversas
formas e cores.
- Que lugar bonito, Rocco.
Kaori se aproximou das árvores e
pegou um dos frutos disformes e excêntricos.
- Será que é bom? - cheirou e esfregou
uma das frutas em seu pulôver vermelho, para lustrá-la. Em seguida, fechou os
olhos e o mordeu vagarosamente. Mastigou, mastigou, mastigou e de sua face
nasceu uma expressão de surpresa.
- Uau! Que bom, Rocco! Você deveria
experimentar! – Então Kaori encostou o fruto no focinho de Rocco. Ele o cheirou
e se afastou, desinteressado.
- Ah, esqueci que você gosta de carne
e ração, não é? Tudo bem. Deve ter uma árvore de algo que se pareça com essas
coisas em algum lugar por aqui. Vamos procurar.
Kaori e Rocco andaram observando as
árvores todas que estavam em volta do rio, mas elas davam apenas frutos
coloridos e poliformicos. Kaori ficou um pouco preocupada porque Rocco poderia estar
com fome e lá não teria nada para ele comer.
Ela se sentou para pensar.
- Como vou encontrar comida para o
Rocco? Aqui apenas tem essas árvores de frutos estranhamente deliciosos.
Kaori coçou a cabeça por algum
momento, admirando a água do rio que corria até sumir no horizonte, formando
uma miragem de gotículas, como nuvens de algodão tocando o solo cor de
chocolate.
- Tive uma idéia! – Kaori se despiu
rapidamente e correu para a beira do rio. Quando olhou para a água, notou que
era totalmente límpida, transparente.
- Uau, olha que engraçado! Dá pra
ver tudo através da água.
Kaori sutilmente colocou a mão na
água e sentiu que temperatura estava perfeita. Nem quente, nem fria. Mergulhou
seus pés vagarosamente e seu corpo crispou. Ela segurou a reação do riso cheio
de dentes com suas mãos tímidas e, em seguida, mergulhou profundamente.
Kaori estava admirada, jamais havia
visto uma água tão gostosa, tão limpa e tão transparente como aquela. Ela podia
nadar de olhos abertos e também bebê-la, porque sabia que não lhe faria mal
algum.
- Ei, Rocco, entra aqui, me ajude a
pegar um peixe pra você!
Rocco apenas a observava, de longe,
deitado na grama uniforme. Então Kaori iniciou a sua procura por um peixe bem
grande para Rocco. E, num de seus mergulhos, ela percebeu algo muito, mas muito
estranho: ao invés de simples peixes havia pequenos homenzinhos nadando, eram
do tamanho de suas mãos e todos estavam nus. Ela nadou, nadou e nadou atrás
deles e eles, apressados, sempre iam à direção contrária. Kaori se apressou,
seguiu-os tentando, de alguma forma, fazer contato. “Como eles são esguios” ela
pensou, “mas preciso pegá-los para saber como consigo peixes por aqui”. Depois
de algumas passadas frustrantes, Kaori conseguiu agarrar um dos pequenos; ele
era frágil, de braços minúsculos e pela pálida. Se debatia euforicamente, soltando
grunhidos finos e desafinados.
- Calma, calma! Eu apenas quero
saber como posso encontrar peixes por aqui. Você sabe?! O pequenino grunhia
cada vez mais alto em tons desafinadamente agudos. Kaori tentou acalmá-lo
acariciando a sua face com seus dedos delicados, mas ele reagiu mordendo-a.
- Ah! – Kaori gritou de dor e, num
movimento involuntário, de espasmo, ela lançou o pequenino para longe. Ele caiu
na grama, perto de Rocco, e não se moveu mais.
- Puxa! será que eu o machuquei!?...
– disse ela assustada, levando as mãos aos lábios. Rocco levantou suas orelhas
e correu para ver o que Kaori havia jogado na grama.
- Não, Rocco, não é pra você! Sai
de perto dele – Kaori saiu da água apressada e veio em direção a Rocco.
Rocco cutucou o pequenino com seu
focinho gelado e úmido, mas ele não se movia. Lambeu, lambeu e lambeu, mas
nada, o pequeno não se movia. Kaori se aproximou e tomou o pequenino em suas
mãos. Seus olhos lagrimejavam e logo lágrimas e mais lágrimas escorriam à sua
face rosada.
- Me desculpe, pequenino, não
queria machucá-lo, mas você me mordeu – choramingou limpando a face molhada com
as mãos – Por que fez isso?
Ela arrancou uma pequena folha da
árvore rosa, colocou sobre uma pedra e deixou o pequenino em cima da folha. Se
vestiu rapidamente e se sentou ao seu lado, velando-o.
- Logo mais ele acordará.
Rocco sentou-se ao lado de Kaori,
sua língua para fora, sempre com uma expressão de alegria em seus olhos.
- Depois que ele melhorar a gente
consegue comida para você, Rocco.
Kaori velou, velou e velou, seus
olhos se tornaram cada vez mais pesados e, assim, ela cochilou. Rocco se
levantou e cheirou o pequenino. Lambeu-o algumas vezes e, então, começou a
comê-lo. Primeiro os braçinhos, depois as perninhas, a cabeça e, por fim, o
tronco.
- Ah! – gritou Kaori assustada –
vendo Rocco com um dos bracinhos em sua boca. Ela não pôde acreditar.
- O que você fez, Rocco?! Como pode
comer uma pessoinha tão pequenininha e indefesa? Você o matou, Rocco! Você o
matou!
Rocco acuou. Teve medo de que Kaori
o maltratasse.
- Cachorro idiota! cachorro idiota!
– gritava, enfurecida, batendo os pés em direção a Rocco. Então Rocco correu,
correu e correu. Foi para o meio dos arbustos acinzentados, logo depois das
arvores de folhas rosa e desapareceu.
- Isso mesmo! Vai embora, seu
cachorro mau! Você é mau! Cachorro mau!
Kaori estava muito nervosa e
perdera o controle. Ela se ajoelhou e bateu as mãos contra a grama gritando
palavras que não existiam. Ela sempre fazia isso quando estava nervosa e
irritada.
- Você vai para o canil, seu
cachorro malvado!
Kaori permaneceu na grama, olhando
a folha solitária, onde estava o pequenino. Ela se encolheu, abraçando seus
joelhos e puxando firmemente seu pulôver ao seu tórax, como se quisesse se
aquecer mais. Desorientada, ela olhou ao redor. Parecia estar cercada por um
vale imenso, com montanhas altas e enormes por todos os lados, cerradas de
árvores das mais diversas cores e tamanhos. O som de água era frequente e
turbilhante, e não se escutava nada mais. Ela permaneceu observando e ouvindo
todas as impressões do ambiente solitário. Então, ela suspirou, abaixou a
cabeça e começou a chorar.
- Não devia ter gritado com o
Rocco. Agora ele vai ficar assustado à noite. Pobrezinho, ainda mais, está com
fome. E logo também estará com frio... Quer dizer, acho que ele só estará com
frio porque ele comeu o pequenino inteirinho.
Kaori não sabia onde deveria
começar a procurá-lo. Ela nem sequer sabia se devia procurá-lo. O que ele havia
feito foi um ato muito cruel. E ela não sabia se poderia perdoá-lo. De todo o
modo, sentia falta dele. Rocco sempre fora seu amigo e companheiro. Sempre
estivera com ela. Desde quando ela se lembrava de que tudo era tudo Rocco
estava lá.
- Temos que fazer o que o nosso
coração manda. E meu coração quer encontrar o Rocco. Então Kaori respirou fundo
e foi em direção aos arbustos. Observou atentamente, para saber se havia algum
movimento naquele emaranhado de folhas e troncos disformes, mas nada, nem mesmo
o vento parecia repelir a relva. Kaori olhou o céu. As nuvens todas cobriam o
vale. Estava tudo cinza. Ela sentiu um arrependimento do fundo da alma. Uma dor
que angustiava seu peito pequenino.
- Logo choverá. Tenho que encontrar
o Rocco.
Kaori correu afastando os galhos e
as folhas que pareciam querer detê-la, como grandes mãos. Mas ela era exígua e
rápida, o que a possibilitava escapar sem muito sacrifício. Durante a corrida,
Kaori pensava o que poderia dizer a Rocco quando o encontrasse. Talvez
começasse pedindo desculpa, o abraçando forte e só depois diria que “jamais se
pode fazer uma coisa tão cruel como comer uma pessoinha, seja ela do tamanho
que for” por motivos que ela inventaria na hora. E já sabia qual seria o
castigo, afinal sempre há um castigo. O castigo seria ficar sem entrar em casa
por uma semana. Teria que dormir no quintal. Mas Kaori também pensava se aquele
seria um castigo justo. Talvez não fosse muito severo, mas também não queria
que o mandassem para o canil, como ela havia dito antes. Ela ouvira histórias
abomináveis sobre o canil e por isso não queria pensar que essas coisas pudessem
acontecer também com Rocco.
De repente um estrondo veio do céu.
Kaori parou. Ela observou às nuvens e viu um fio de luz estridente e forte
cortá-las. Kaori cerrou os olhos e tampou as orelhas o mais rápido que pode.
Mas mesmo assim ela não pôde deixar de escutar aquele imenso estrondo que ecoou
pelo vale como um urro de um monstro.
- Nossa! Parece que a terra tremeu.
Então Kaori se lembrou que Rocco
tinha muito medo de relâmpagos e trovões. Seus olhos estalaram com essa
lembrança e ela levou as mãos para a cabeça, preocupada.
- Preciso encontrar o Rocco!
Preciso mesmo encontrar o Rocco!
Antes de correr, ela olhou ao redor
prestando atenção a todo e qualquer movimento, mas nada. Nada se movia. Kaori
seguiu em frente.
Ela circulou pela relva que
contornava o rio dos pequeninos, olhando a cada espaço. Enquanto avançava,
chamava pelo nome de Rocco.
- Rocco! Rocco! Apareça! Prometo
que não vou te castigar.
Mas Rocco não aparecia.
“Onde ele estará?” pensou com a
alma esmorecida.
Kaori se arrependera profundamente
de ter sido rude com seu cãozinho. No fundo, a culpa havia sido dela. Foi ela
quem lançou o homenzinho à margem, onde Rocco descansava seus olhos. E, bem
provavelmente, ele já estava morto quando Rocco o comeu.
“Puxa, espero que ele esteja bem”.
Agora Kaori estava sozinha e o céu
se tornava cada vez mais negro e escuro. As luzes de raios, das mais variadas
cores, cortavam o horizonte. Kaori sentiu seu peito apertar. Suas pernas
fraquejavam. Temia não conseguir encontrar seu amigo peludo. Temia não se
encontrar naquele espaço negro e selvagem.
Seus olhos encheram de lágrimas.
Ela estava cansada, mas sabia que precisava ser forte. Tinha de encontrar Rocco
e por isso teria de continuar a andar.
Os pingos de água molhavam
gradualmente seu rosto.
- Oh não! Agora está chovendo.
Para se proteger, ela cobriu sua
cabeça com o pulôver. Mas logo seu pulôver se encharcara e ela sentiu o frio
atravessar sua espinha, convertendo todo seu esforço em se manter seca e
aquecida em cansaço e exaustão. Estava cada vez mais escuro e, por isso, Kaori
temia tropeçar e cair. Os pingos dispersos logo se transformaram numa chuva
torrencial. Kaori apenas desejava estar seca e aquecida. Mas para onde ir? Estava
escuro demais para enxergar. Era como andar de olhos fechados, mesmo estando
abertos e atentos.
- Não agüento mais. Preciso arranjar
um lugar para me proteger e descansar se quiser ter forças para encontrar o
Rocco.
Kaori recostou no tronco de uma
árvore e caiu de joelhos.
- Não agüento mais... – sussurrou mais
uma vez, antes de desmaiar. Seu corpinho esquálido e pálido se derramou sobre o
barro negro e vacilante. As poças se abriam em pequenos córregos – como se
quisessem carregá-la, transformá-la em corrente – e a chuva a atingia como
flechas minúsculas, desorientadamente certeiras. Não se ouvia nada além do
barulho da água que escoava pelos troncos, galhos, caules e folhas que ali
existiam. Kaori agora descansava em seu desmaio como que incorporada
perfeitamente à paisagem triste e crepuscular.
Os estrondos orquestrados da
natureza se tornaram ainda maior. O cataclismo do ambiente fazia dançar as
árvores, os galhos e os arbustos. Todo o redor se tornava acidentado e
desastroso. Já não era possível saber qual direção tomar. A chuva, em
torrentes, deturpava a visão por completo.
- O que ser isso? – disse uma voz
grave e pigarreada.
Era Buffalo Jack. Ele voltava de
sua tarde de caça nos vales.
Curioso, ele deitou seu saco com a
captura do dia e se aproximou de Kaori. Chutou-a levemente com seus cascos
barrentos para saber se isso reagiria. Nada.
- Será que isso ser gostoso como os
suricatos?
Buffalo Jack a pegou pelos braços e
a jogou por cima dos ombros. Agarrou seu saco com seus dedos grossos da mão
esquerda e seguiu seu caminho. Ele realizava suas passadas rústicas de gigante
como se pudesse enxergar cada ínfimo centímetro naquela negritude turva. Seu tronco
era robusto e forte e carregava Kaori sem dificuldade alguma. Suas pernas, aparentemente
desproporcionais ao corpo, finas e rijas, davam passos pesados e uníssonos.
- Como isso chegar aqui? Será que Adam
está por traz disso? Aquele escroto! – Tossiu. Era uma tosse carregada e longa,
como um grunhido de porco.
Buffalo Jack praguejava o nome de Adam
enquanto cuspia seus excessos no rio cristalino dos Pequeninos, onde Kaori
havia brigado com Rocco.
A chuva não cessaria tão cedo e
parecia cada vez mais espessa. Buffalo Jack, percebendo que não teria trégua,
cortou caminho pelas fendas do vale, embalado pelos uivos dissonantes que noite
e dia ecoava pelos poros do solo e das paredes rochosas dali.
- Calem a boca! – sua voz
estridente sonou pelo espaço, mas logo foi engolida pelos intensos uivos do
vale sinistro.
Irritado, Buffalo Jack correu. O
corpo de Kaori, como uma marionete, balançava pesadamente em seus ombros, mas
ela continuava inconsciente. Depois de atravessar o vale, Buffalo Jack já
estaria em sua casa. Ele habitava uma choupana de madeira enegrecida. Logo que
se avistava sua choupana decadente, podia-se notar os degraus capengas e
rangentes. Também se via a única janela da casa, que tinha formato de lua minguante.
Na primavera e no verão, Buffalo Jack sempre se sentava ao pé da lua de madeira,
fumando seu cachimbo, para observar os lírios fragorosos que nasciam perto dos
teixos; as árvores que ali tinham, dançavam cortejando o sol resplandecente.
Buffalo Jack não era de falar. Aliás, ele não sabia muitas palavras. Apesar dos
cachimbos que tragava, dando-lhe ar de um homenzarrão intelectual, Buffalo Jack
era de humor rústico – assim como sua casa. Seus trejeitos lhe faltavam beleza
e delicadeza. Os pequenos olhos amarelos diziam muito pouco sobre ele e também
sobre seus pensamentos. Raramente ria. Dificilmente saia de sua casa – apenas
para caçar suricatos ou para buscar água no riacho dos pequeninos.
- Agora faltar pouco para comer
suricatos – salivou enquanto empurrava a porta pobremente lenhada. Sugou
profundamente o ar para os pulmões com sua narina negra, úmida e avantajada e
esparramou pelo soalho as carcaças de suricatos mornamente mortos e totalmente
ensopados pela chuva de torrentes.
Nos seus ombros ainda esta Kaori.
Ele a segurou pelo pulôver, como um boneco desengonçado, cerrou os olhos para
acurar a visão e tentou capturar alguma semelhança consigo ou com a realidade
que conhecia. Coçou o alto da testa, calcou o queixo, negaceou com a cabeça...
ele não sabia o que ser isso.
- Buffalo Jack levou Kaori para o
cômodo de suas ferramentas, deitando-a no chão. Ela estava ensopada, escorrendo
água por todas as extremidades do corpo.
- Adam saber o que ser isso! –
sussurrou contemplando-a taciturnamente.
Antes de sair do cômodo fechando a
porta rangente, Buffalo Jack tirou seu cachimbo do bolso, bateu-o contra a
parede para remover o excesso da guimba, desenrolou o fumo de crisântemo e,
assim o acendeu; aproveitando a chama, foi até a lamparina do cômodo para
acendê-la também, iluminando minimamente o local onde Kaori jazia.
- Vou preparar meus suricatos.
[... continua: próxima publicação até 02.08.2015]
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